O LOTE CLANDESTINO

O LOTE CLANDESTINO

Um título é capaz de revelar bastante. A palavra lote chegou ao português via francês, mas as origens dela são anglo-germânicas. As principais acepções em inglês — quantidade, conjunto de objetos, itens para leilão, quinhão numa partilha, espécie, parcela de terra — o português moderno revela igualmente, além de outras curiosas que a língua de Yeats e Williams não possui. Todos esses significados têm a ver com as estruturas e as temáticas do presente livro, e os leitores terão prazer em fazer as associações. Há um sentido em inglês de lot, porém, que a língua de Bandeira e dos Andrades não manifesta, e ele tem tudo a ver. Aguardem a conexão.

O vocábulo clandestino, por sua vez, remete-nos aos antigos poderes secretos da lírica encantatória, à condição (pós-)moderna da arte do verso relegada a cantos escondidos, e ao papel subversivo do poeta. Os leitores deleitar-se-ão igualmente em ligar essas e outras reverberações do título às argutas instâncias líricas e aos conturbados momentos antilíricos desta coleção. E ali há uma outra surpresa, épica; aguardem.

Por agora, lembrem-se que clandestino é sinônimo de bookmaker, aquele que aceita apostas às escondidas, e que no idioma-fonte significa “quem faz livros”. Pois bem, de livro Adriano Espínola tem feito muito: criou um dos mais interessantes títulos da recente poesia brasileira, aceitou desafios textuais vários, e apostou em soluções novas e combinações instigantes e intrigantes, fórmulas originais.

Nada de esconder-se (feito clandestino em navio ou trem) neste chamativo conjunto de poemas. Pelo contrário, seus eus líricos (às vezes aparentando confundir-se com o próprio autor, ou prévia encarnação dele, brincando com a impessoalidade eliotiana), suas personae gritando ou desenhando lances, jogam-se em ruas, esquinas, praças, espaços públicos, domínios literários nacionais e áreas transnacionais. Tudo para expor dramas e explorar linguagens, testar e contestar fazeres e afazeres, exorcizar demônios e dilemas de quem vive como cabeça pensante e criativa na sociedade de consumo (“com-/pensa”?), convive com tantas presenças poéticas, e convence, afinal, com construções intrincadas e insights imaginativos em série.

Aqui, a intertextualidade em todas as suas formas é instrutiva, divertida e essencial, como se vê no poema “O banquete dos mendigos”. Mas os materiais em tensão (unidades utilitárias e “inutilidades” artísticas) e a deliciosa dialética de signos e sinais, notadamente nas seções visuais “Urbs” e “Grafites”, da ética debatida e da estética de batida (“Eu, o real fundador do cinismo na poesia brasileira”), informam mais, no fim das contas, tanto no sentido textual quanto no contábil.

E o nosso fim? Chegar ao que faltava falar dos substantivos do título. Pois bem, no idioma de Pound lot carrega o sentido de fate, destiny. E é de fato a sina de um ser poeta (anti-sermo nobilis, homo ludens, designer, fingidor, ente dolorosamente questionador, entre outras coisas) que a voz de um homem de seu tempo entoa nestas páginas, sobretudo no poema épico inicial, “Minha gravata colorida”. Espínola é esse veloz fazedor, que divaga e brilha em um mundo cada vez mais instrumentalista, nesta nefasta fase neoliberal.

Captar nas antenas e cantar as palavras da tribo, o fado da grande família, a fortuna de coletividades (de escritores, de cidadãos), o destino do clã, o avesso e o reverso (“O verso — e o meu reverso — é o meu salário”) do clan-destino, no verso de uma consciência aguda, na ciência do dizer de um destro de nossos dias, no Brasil e alhures. Adiante, para a frente, all aboard, como proclama no seu vertiginoso Táxi (1986), saído das estradas abertas por este livro.

O lote clandestino, nesta 2a. edição (a 1a. é de 82), continua penetrante, valioso, valente, polivalente. O poeta é convictamente urbano; está a postos na praça. Atenção, companheiros leitores. Sempre com direito à ambigüidade apropriada, duas perguntas ficam em relação a este Lote: “Quem dá mais ? Quem se habilita?”