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Mauro Dias conversa com Charles Perrone (CP) e Christopher Dunn; (CD). April 18-20, 2001

1 Como surgiu o interesse pela música brasileira? Vocês a ouvem desde quando? E, do que ouvem, de que gostam mais?

CP: Comecei a ter contato com músicos brasileiros (filhos de exilados) no México no início da década de 70, através de minhas atividades como produtor de eventos musicais. Em 1974, entrei num curso de português na Califórnia em que a professora sempre apresentava canções: João Gilberto, Caetano Veloso, Chico Buarque, e sobretudo Dorival Caymmi. Ela me deu o Cancioneiro da Bahia dele, e dali para a frente o interesse propriamente musical foi virando também tema de pesquisa. Em 1978-79 fiquei no Brasil para dedicar-me ao estudo da prosa narrativa, principalmente a chamada regionalista, e da música popular, começando pelo folclore e chegando até a música popular urbana mais contemporânea. A MPB (no sentido mais restrito, da geração dos festivais) ficou sendo minha especialidade, e a poesia da canção foi o tema da minha tese de doutoramento (em livro Letras e Letras da MPB, Rio, 1988). Sou mais conhecido pelo livro Masters of Contemporary Brazilian Song MPB 1965-1985 (Texas, 1989), um estudo dos mais importantes compositores (cancionistas) e seus contextos culturais e históricos. Nalguma ocasião falaram que havia muitas maneiras de fazer música brasileira e que Gilbeto Gil preferia todas. Algo disso tenho eu também. Tendo que responder mais diretamente diria que hoje estou preferindo sons do Nordeste, o trabalho dos paulistas Arnaldo Antunes e grupo Karnak, e a música instrumental de artistas como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Trio Madeira. Chris Dunn e eu colocamos na Internet, no excelente site de , nossas listas dos 20 LPs brasileiros favoritos de todos os tempos (isto é, desde 1958).

CD: Sou quinze anos mais jovem que Charles, portanto vim a conhecer a música brasileira mais tarde. Meu primeiro ponto de referencia foi a música “Aguas de março” de Tom Jobim, nas versões de Elis Regina e João Gilberto que ouvi em 1984. Conheci a geração da MPB– Chico, Gil, Milton, Caetano, Gal, Bethânia, etc. logo depois. Em 1987-88, passei um ano em Salvador durante a época em que o movimento dos blocos afros estava ganhando força nos cenários nacional e internacional. Esta cultura musical de rua, que misturava um ritmo gostoso, o samba-reggae, com novos discursos relacionados à identidade negra, me impressionou muito. Voltando aos EUA, colaborei na produção de vários segmentos do programa “Afropop Worldwide” (então da rede de National Public Radio) que enfocavam música de origem predominantemente negra do Brasil. Em 1992, ajudei a produzir um programa comemorativa dos 25 anos de Tropicália e tive a oportunidade de entrevistar Caetano, Gil, e Tom Zé. Estas entrevistas me inspiraram tanto que acabei dedicando o resto da década pesquisando e escrevendo sobre este movimento, o que rendeu um livro chamado Brutality Garden: Tropicália and the Emergence of a Brazilian Counterculture que vai sair em agosto de 2001. Atualmente me sinto mais atraido pelas coisas contraculturais dos anos 70 e pela música recente. O outro dia “quemei” [gravei no micro] um CD de favoritos (batizado de “Seleção 2001”) que inclui a música mais nova de Tom Zé, Pedro Luis e a Parede, Andrea Marquee, Lenine, Arnaldo Antunes, Chico Science e Nação Zumbi, misturado com coisas maravilhosas dos anos 70 de Raul Seixas, Os Novos Baianos, Jorge Ben da época de Tábua de Esmeralda, Caetano de Transa e Gil de Refavela. A música brasileira é, como disse Gil, um “eterno deus mu dança” e minha lista de preferidas está em fluxo constante. Itamar Assumpção é um gênio.

2 A música brasileira tem várias faces regionais, ritmos, gêneros e subgêneros contados aos milhares, muitos deles desconhecidos mesmo no Brasil, fora de suas regiões originais. O que vocês conhecem dessa diversidade?

CP CD: Num sentido, pode-se dizer que o bastante que conhecemos é pouco, pois existem, de fato, tantos mundos musicais no Brasil que seria pretensioso afirmar que conhecemos exaustivamente a diversidade musical desse país. Por outro lado, pertencemos, sim, a um grupo de especialistas, formado por brasileiros e estrangeiros, que compreende bem a magnitude do universo musical do Brasil.

CP: Saber da existência de alguma manifestação musical através de livros ou depoimentos é uma coisa (e posso dizer que me dediquei durante muitos anos à bibliografia pertinente); outra coisa é conhecer essa música no sentido de tê-la ouvido ao vivo, ter experimentado seu lugar natural, ter convivido com os músicos e consumidores. Viajei a todas as regiões do Brasil e a quase todos os estados, e em todos procurei conhecer algo da cultura musical. Acho que ninguém consegue abarcar a totalidade.

CD: Eu conheço razoavelmente bem a música do eixo Bahia-Rio-São Paulo. Conheço a bossa nova e seus frutos diversos da geração surgida nos anos 60, que definiu os contornos da chamada MPB. Conheço alguns dos clássicos da larga tradição sambista. Adoro o bumba-meu-boi de Madre Deus de São Luis do Maranhão. A produção musical de Recife nos anos 90 foi impressionante. O maior fenômeno de Heavy Metal dos últimos anos saiu de Sagrada Família, um bairro operário de Belo Horizonte.

3. “Chiclete com Banana” é nome de um sucesso do cantor e compositor pernambucano Jackson do Pandeiro, dos anos 50. Gilberto Gil regravou a música 20 anos depois. É uma crítica à americanização da música brasileira e dá título ao livro de vocês, que é uma visão externa da música brasileira. Como vocês lidam com isso? Aceitam o sentido original do título, discutem esse sentido, discordam dele?

CD/CP: Primeiro, precisamos esclarecer que o título do livro não é Chiclete com Banana, mas sim Brazilian Popular Music and Globalization. “Chiclete com Banana,” é o título da introdução. Segundo, devemos salientar que este livro não é simplesmente “uma visão externa da música brasileira,” já que mais de um terço dos textos são de autores brasileiros. Três dos ensaístas são estrangeiros que vivem no Brasil, portanto não escrevem de fora, no sentido estritamente geográfico. Tivemos o prazer de trabalhar com uma “ala baiana” de pesquisadores excepcionais– Ari Lima, Milton Moura, Osmundo Pinho, e Antonio Godi– que têm desenvolvido projetos coletivos e individuais sobre a complexidade da cena musical de Salvador, a qual é, ao mesmo tempo, globalizada e enraizada em práticas musicais locais. Terceiro, não achamos que a canção de Gordurinha e José Gomes (isto é, o paraibano Jackson do Pandeiro) seja uma simples “crítica à americanização da música brasileira,” do ponto de vista de um nacionalismo estreito. É, antes, uma reivindicação irônica de uma relação mais complexa e dialógica entre duas grandes culturas musicais das Américas. É uma crítica da americanização que, paradoxalmente, assume a dita influência iânqui sobre a música brasileira em termos de procedimento formal. Assim, essa canção pode ser entendida como uma obra antropofágica que se apropria de alguns traços da música norteamericana justamente para fazer uma crítica bem-humorada e iconoclasta ao fluxo desigual entre as duas culturas. Nossa introdução traz a história discográfica de “Chiclete com Banana”, para o que contamos com a ajuda de Jairo Severiano.

4 Carmem Miranda é um de seus personagens. O êxito internacional de Carmem deveu-se mais à política adotada por Roosevelt de aproximar a América Latina dos Estados Unidos, na época da 2.ª Guerra, do que ao talento dela (o que não significa que ela não tivesse talento). Como vocês enxergam a figura de Carmem Miranda? Consideram Carmem um fenômeno político, político-cultural ou artístico? Ou um pouco de cada coisa?

CP CD: Bom, lembremos que o primeiro capítulo do livro é o artigo de Caetano Veloso sobre Carmen Miranda (que apareceu traduzido e reduzido em The New York Times e completo em outro jornal brasileiro). Nós, os co-organizadors do livro, achamos que o êxito de Carmen (nacional e internacional) deveu-se ao talento inegável dela somado ao nacionalismo cultural do Estado Novo e à fascinação do público norteamericano e europeu dos anos 40 e 50 pelas “coisas latinas”. Não esqueçamos o influxo migratório de latino-americanos para os EUA e a popularidade das músicas cubana, brasileira e anglo-caribenha no mundo atlântico durante esta época. A política da Boa Vizinhança também ajudou a criar um clima panamericano com o apoio decisivo de Hollywood que forneceu (nem sempre conscientemente) um veículo para divulgar aquela conjunção de talento artístico, afirmação nacional e política internacional que era Carmen Miranda. Claro, tudo isto precisa ser contextualizado historicamente. Hoje, nos EUA, alguns alunos nossos de 20 anos podem curtir Tom Zé, Ilê Aiyê, ou Chico César, mas nunca ouviram falar em Carmen Miranda. Há uma década, Caetano Veloso afirmou numa entrevista, “pode ser, no entanto, que num futuro remoto, sob os escombros do Império Americano, alguém constate apenas que em sua periferia apareceu uma mulher chamada Carmen Miranda, um arquiteto que construiu uma cidade e nada mais.” É uma idéia muito sugestiva como quase tudo que Caetano canta, diz ou escreve. Somos mais otimistas, não em relação ao “Império Americano”, que haverá de sofrer sua queda algum dia como todos os impérios, mas em relação ao legado cultural brasileiro do século passado. Pode ser que o Brasil nesse futuro que Caetano imagina vá ser devidamente reconhecido por uma multiplicidade de fenômenos ou legados culturais. Pode ser que o Brasil não seja pensado como uma periferia. Pode ser que não existam mais nem periferias nem centros. Talvez Carmen e Brasília fiquem então como marcos da história dos meados do século vinte e nada mais. Outros virão.

5 A etnomusicologia é uma especialidade científica recente. Que contribuição, na visão de vocês, a etnomusicologia pode dar ou tem dado à compreensão do mundo? Ela de fato revela diversidades? Ou, como querem alguns estudiosos, a etnomusicologia disfarça a diversidade para torná-la mais compreensível à percepção dos países economicamente dominantes?

CP CD: Antes de tudo, devemos salientar que nós, os organizadores desta coletânea, não somos etnomusicólogos. Formamo-nos no campo de letras com especialização na literatura e cultura brasileiras. Os ensaístas baianos são especialistas em antropologia, sociologia, e comunicação. O livro termina com ensaios de três etnomusicólogos norteamericanos que trabalham com a música brasileira. Sem sermos propriamente da área, os co-organizadores temos a impressão de que alguns setores deste campo, pelo menos nos EUA, ficaram presos a uma idéia muito estreita em relação à música do “outro” durante muitos anos. Instrumentos ligados na tomada ou músicas tocando no rádio não eram dignas de estudo musicológico. Eram coisas “popularescas” ou “comerciais” e não “autênticas.” O problema da etnomusicologia era que exigia um caráter localista quase bucólico de um objeto “puro,” impermeável à modernidade. Os estudos de culturas musicais não-massificadas continuam a ter seu valor. Mas há que destacar a importância de culturas musicais “populares” em termos mercadológicos, que muitas vezes carregam um sentido de modernidade transnacional no Brasil e que ao mesmo tempo trazem uma marca de diferença ou “diversidade” no âmbito internacional do consumo cultural.

6 Que autores brasileiros foram importantes para sua compreensão da cultura brasileira? Em que medida foram importantes?

CP: O autor brasileiro mais lido na minha faculdade no início dos 70 era � Fernando Henrique Cardoso (“esqueçam o que escrevi..”). O primeiro curso que fiz, em língua portuguesa, de Cultura Brasileira, enfatizava Gilberto Freyre. Orientei-me no folclore através de Câmara Cascudo, Oneyda Alvarenga e outros. No que se refere a música popular urbana, adquiri e estudei ao longo dos anos todos os livros de Tinhorão. Os dois livros que mudaram o meu entendimento da música popular foram Música Popular Brasileira de José Homem de Mello e Balanço da Bossa de Augusto de Campos et al.

CD: A tarefa é difícil porque há tantos. Para ser breve gostaria de citar primeiro Roberto Schwarz e Silviano Santiago, dois grandes críticos brasileiros cujos ensaios de crítica cultural anteciparam por décadas as discussões contemporâneas sobre o posmoderno, o poscolonial, a subalternidade e a hibridez , sem necessariamente usarem estes conceitos. Concordo com o crítico norteamericano Neil Larsen quando diz que o estudo de Schwarz “Cultura e Política, 1964-69” é o melhor ensaio sobre os anos 60 em qualquer língua. Eu não endosso inteiramente a perspectiva deste ensaio, mas reconheço sua maestria, sempre aprendo com ele e sempre tenho prazer em relê-lo. Posso dizer o mesmo sobre os ensaios de Santiago sobre a contracultura dos anos 70. Foi muito gratificante para nós ver publicada em inglês uma coletânea de ensaios de Schwarz pela editora Verso alguns anos atrás. Ainda falta fazer o mesmo com a produção intelectual de Santiago. As divergências entre estes dois autores são muito produtivas e reveladoras. Na área de ciências sociais, os estudos de Renato Ortiz sobre a industria cultural são chaves.

CP/ CD: Fomos inspirados diretamente pela coletânea, Ritmos em Trânsito, feita por estudiosos baianos, alguns dos quais colaboraram neste nosso livro. Os ensaios de Augusto de Campos sobre a MPB e as vanguardas estéticas são fundamentais. O trabalho crítico de José Miguel Wisnik e o musicológico de Martha Ulhôa são também indispensáveis. Hermano Vianna escreveu o trabalho pioneiro sobre a cultura funk no Brasil e seu livro O mistério do samba é uma tomada de posição muito interessante e sintética. O jornalismo musical do Brasil é muito rico: destacamos os nomes Ana Maria Baiana, Tárik de Souza, Zuza Homem de Melo, e Carlos Calado. Este último escreveu a história mais completa sobre a Tropicália. Atualmente, apreciamos o trabalho de Marcelo Ridenti, um estudioso jovem. Seu Em busca do povo brasileiro é um grande estudo da cultura dos anos 60. Embora não compartilhemos a visão nacionalista ortodoxa de José Ramos Tinhorão, reconhecemos a contribuição inigualável de sua vasta obra sobre música popular urbana. Aliás, ele é o mais prolífico e influente dos pesquisadores dedicados aos fenômenos urbanos e quem mais tem estimulado debate. Uma curiosidade: foi ele quem escolheu as músicas para um show musical de Boal em São Paulo no final dos anos 60 chamado “Chiclete & Banana” (gravado em Discos Beverly). Finalmente, achamos genial o livro de Caetano Veloso, Verdade Tropical que finalmente será publicado nos EUA em agosto. As posições destes autores não são compatíveis entre si, mas todos eles nos ajudaram de alguma forma a entender a complexidade e a grandeza da cultura brasileira.

7 Até que ponto a questão do mercado (empresas multinacionais da área fonográfica, da edição musical, a televisão a cabo, a internet etc) é levada em consideração no estudo dvocês? O Brasil é um dos países que mais negocia discos, em seu mercado interno (já foi o segundo maior vendedor de discos, hoje caiu para a quarta posição). O reconhecimento internacional de músicos brasileiros deve alguma coisa aos interesses da indústria do disco?

CP CD: De uma forma ou de outra, quase todos os ensaios lidam com a questão do mercado sem encará-la diretamente. Em nossa introdução salientamos a relativa força dos mercados interiores (nacionais e regionais). É claro que as empresas multinacionais de discos querem se aproveitar do mercado crescente de música internacional. Mas não podemos reduzir este reconhecimento internacional a uma simples luta pelo espaço mercadológico. O sucesso dos brasileiros no âmbito internacional deve-se, em grande medida, à qualidade e complexidade da música brasileira.

8 O interesse pela diversidade musical internacional é fruto de interesses da indústria do disco ou trata-se de um fenômeno efetivamente cultural?

CP CD: As duas coisas. A categoria “world music” foi inventada no final nos anos 80 por um grupo de produtores e críticos ingleses. A invenção desta categoria foi uma resposta mercadológica a vários fenômenos: 1) a decadência do rock; 2) a globalização econômica e a imigração; 3) a difusão do discurso de “multiculturalismo” no Ocidente, com sua fascinação nem sempre positiva pelo “outro” ou pelo “exótico”; 4) a formação de novos selos independentes ou subsidiários quase-independentes que investiram neste mercado com a combinação de interesse econômico e interesse cultural sincero; e 5) a modernização dos meios de produção nos países do chamado terceiro mundo. O Brasil ocupa um espaço do “entre-lugar” no campo de “world music” já que vem sendo um país simultaneamente importador e exportador de produtos musicais pelo menos desde os anos 20 do século passado. Nos anos 60 a bossa nova fez uma intervenção extraordinária no mundo do jazz, ultrapassando o impacto da música cubana nas décadas anteriores. Por muitos anos procuramos os discos de música brasileira na seção de jazz das lojas de discos. Isto mudou com a criação da categoria “world music,” que vem muitas vezes com sub-categorias nacionais. Agora achamos os discos de Milton Nascimento sob o rótulo simples de “Brazil.” Seria interessante achar Os Mutantes e Os Titãs na categoria “rock,” Carlos Malta na “jazz,” e Racionais MC na “rap,” mas isto também criaria outros regimes de classificação que não dessem conta da marca de brasilidade contida nestes discos. Onde colocar Gilberto Gil? Marisa Monte? Tom Zé? Jorge Benjor? Funk Como Le Gusta? Lenine? Dona Selma do Côco? No momento, só o rótulo nacional consegue pôr uma ordem neste quadro.

9 � A globalização é boa ou ruim para as culturas dos países do terceiro mundo?

Cp CD: Discordamos dos termos da pergunta. Nossa resposta está implícita em todas as outras respostas desta entrevista.

10 � Que importância tem, para vocês, o conceito de identidade cultural? A idéia das identidades culturais de diversas nacionalidades ainda tem lugar, no mundo globalizado?

CP CD: Não vemos uma contradição entre a globalização e a expressão de identidades locais, regionais e nacionais. Em muitos casos, o local, ou melhor, o particular (no sentido étnico, cultural, identitário) ganha mais espaço no contexto da globalização. O Olodum, por exemplo, jamais teria ganho o espaço que tem no mercado mundial de discos, shows, e oficinas de percussão sem a globalização cultural e a expansão de discursos e práticas transnacionais ligadas à diaspora africana. Mesmo assim, a idéia nacional ainda tem sua força, especialmente no caso do Brasil, que tem forjado ao longo dos séculos uma identidade nacional muito forte. Por mais regional ou global que seja, a maioria dos produtos culturais brasileiros voltam, em função da língua portuguesa, para a referência nacional. Mas este ponto de referência, as vezes chamado de “brasilidade,” já está muito fragmentado e contestado.

11. O mais importante dos historiadores da música brasileira chama-se José Ramos Tinhorão. Ele tem uma teoria interessante sobre a troca de informações interculturais. Falando especificamente da música brasileira, diz que, no início do século 20, já estava formada a identidade da música brasileira, que resultava da soma de vários elementos: a combinação da música de origem negra, a dos indígenas, a música européia clássica, a música da Península Ibérica (plena de elementos mouros), principalmente. Quando o rádio surgiu, no Brasil, em meados dos anos 1910, essa música brasileira, já formada, dialogava com a música norte-americana e com ela trocava influências; a partir dos anos 1940, no entender de Tinhorão, o diálogo cessou. A música norte-americana passou a impor padrões. sem estabelecer nenhuma troca. Tinhorão é marxista e atribui o fato ao poderio econômico dos Estados Unidos. Vocês conhecem a teoria? O que pensam dela?

CP CD: Não achamos que esta suposta época áurea de diálogo pleno entre o Brasil e os EUA existisse nas primeiras décadas do século 20. O quadro de música popular nortemericano até os anos 40 ainda estava muito voltado para tradições locais. Quando muito, as referências musicais eram caribenhas, sobretudo cubanas (habanera), ou por via de Paris, argentinas (tango). Existe diálogo com a música brasileira no jazz de Louis Armstrong? Ou no swing de Cab Calloway? Ou no blues de Robert Johnson? Por outro lado, cremos que a introdução de padrões norteamericanos no Brasil começou muito antes. Já nos anos vinte havia conjuntos de maxixe e de samba que se designavam “jazz bands.” Vide o espetacular volume de Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras. Foi a bossa nova que virou a mesa e estabeleceu realmente aquele diálogo tão desejado por Tinhorão e por nós também. Então não deixa de ser curioso que Tinhorão rejeitasse tão amargamente aquele diálogo entre samba e jazz que, por via indireta, desembocaria na bossa nova. A posição de Tinhorão tem sentido quando aponta para o peso do poderio econômico dos EUA nesta troca; a relação desigual é comentada e ironizada explicitamente por artistas da bossa nova e seus seguidores da geração da MPB. No que se refere ao impacto dos músicos brasileiros nos Estados Unidos, um só dado diz tudo. Numa edição do Real Book , o livro de composições cifradas que os profissionais da música carregam para clubes e hotéis e outros lugares de trabalho, o compositor mais incluido é Duke Ellington. O autor com o segundo maior número de títulos é Jobim.

Charles A. Perrone, Professor of Portuguese & Luso-Brazilian Literature/Culture
web page: http://web.clas.ufl.edu/users/cap
Dept.of Romance Languages and Literatures, University of Florida Dauer Hall 170
Gainesville FL 32611-7405

Christopher Dunn, Assistant Professor
Department of Spanish and Portuguese
African and African Diaspora Studies
302 Newcomb Hall Tulane University
New Orleans, LA 70118-5698