Leia entrevista com os organizadores n’O Estado de São Paulo

Sábado, 28 de abril de 2001 caderno 2 O Estado de São Paulo “Globalização não exclui identidade nacional” MAURO DIAS

Perrone e Dunn, organizadores da coletânea de ensaios sobre música brasileira, acham que a referência de ‘brasilidade’ já está muito fragmentada e contestada

Entre os assuntos estudados em Brasizilian Popular Musicand Globalization estão o papel de Orfeu Negro, o filme de Marcel Camus, na internacionalização da música brasileira, o tropicalismo, o funk global na Bahia e no Rio, o carnaval globalizado, a contracultura,as canções do Olodum, o reggae baiano, o maracatu de baque virado e sua presença no trabalho de Chico Science, a redescoberta dalinguagem próxima da raiz pernambucana pelo grupo Mestre Ambrósio.

Alguns textos foram escritos especialmente para o livro. Carmem Miranda, análise de Caetano Veloso do fenômemo da brazilian bombshell, foi originalmente publicada no The New YorkTimes. Outros autores brasileiros são Ari Lima, Idelber Avelar, Osmundo de Araújo Pinho. Os organizadores também assinam
estudos individuais e assinam o prólogo do livro, Chiclete com Banana: Internalization in Brazilian Popular Music. Não há previsão de edição do volume em português. Outras informações sobre o volume, e sobre como comprá-lo, podem ser obtidas no site http://web.clas.ufl.edu/users/cap. Abaixo, trechos da
entrevista concedida ao Estado, por e-mail, pelos dois organizadores da coletânea.

Estado – Como surgiu o interesse pela música brasileira?cap

Charles A. Perrone – Comecei a ter contato com músicos brasileiros (filhos de exilados) no México, no
início da década de 70, por meio de minhas atividades como produtor de eventos musicais. Em 1974, entrei
num curso de português na Califórnia, em que a professora sempre apresentava canções: João Gilberto,
Caetano Veloso, Chico Buarque e, sobretudo, Dorival Caymmi. Ela me deu o Cancioneiro da Bahia dele e dali
para a frente o interesse propriamente musical foi virando também tema de pesquisa. Em 1978-79, fiquei no
Brasil para dedicar-me ao estudo da prosa narrativa, principalmente a chamada regionalista, e da música
popular, começando pelo folclore e chegando até a música popular urbana mais contemporânea. A poesia da
canção foi o tema da minha tese de doutoramento (em livro, Letras e Letras da MPB, Rio, 1988). Sou mais
conhecido pelo livro Masters of Contemporary Brazilian Song MPB 1965-1985 (Texas, 1989), um estudo dos
mais importantes compositores (cancionistas) e seus contextos culturais e históricos. Hoje estou preferindo sons
do Nordeste, o trabalho dos paulistas Arnaldo Antunes e o grupo Karnak, e a música instrumental de artistas
como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Trio Madeira Brasil

dunnChristopher J. Dunn – Sou 15 anos mais jovem que Charles, portanto vim a conhecer a música
brasileira mais tarde. Meu primeiro ponto de referência foi a música Águas de Março, de Tom Jobim, nas
versões de Elis Regina e João Gilberto, que ouvi em 1984. Conheci a geração da MPB – Chico, Gil, Milton,
Caetano, Gal, Bethânia, etc. logo depois. Em 1987-88, passei um ano em Salvador, na época em que o
movimento dos blocos afros estava ganhando força nacional e internacional. Esta cultura musical de rua, que
misturava um ritmo gostoso, o samba-reggae, com novos discursos relacionados à identidade negra, me
impressionou muito. Voltando aos EUA, colaborei na produção de vários segmentos do programa Afropop
Worldwide, que enfocava música de origem predominantemente negra do Brasil. Em 1992, ajudei a produzir
um programa comemorativo dos 25 anos da Tropicália e tive a oportunidade de entrevistar Caetano, Gil e Tom
Zé. Essas entrevistas me inspiraram tanto que acabei dedicando o resto da década pesquisando e escrevendo
sobre este movimento, o que rendeu um livro chamado Brutality Garden: Tropicália and the Emergence of a
Brazilian Counterculture. Atualmente me sinto mais atraído pelas coisas contraculturais dos anos 70 e pela
música recente.

Estado – O que vocês conhecem da diversidade da MPB?

Perrone e Dunn – O bastante que conhecemos é pouco, pois
existem muitos mundos musicais no Brasil. Seria pretensioso afirmar
que conhecemos exaustivamente sua diversidade musical. Por outro
lado, pertencemos, sim, a um grupo de especialistas, formado por
brasileiros e estrangeiros, que compreende bem a magnitude do
universo musical do Brasil.

Perrone – Saber da existência de alguma manifestação
musical, por meio de livros ou depoimentos, é uma coisa ; outra é
conhecer essa música no sentido de tê-la ouvido ao vivo, ter
experimentado seu lugar natural, ter convivido com os músicos e
consumidores. Viajei a todas as regiões do Brasil e a quase todos os
Estados e em todos procurei conhecer algo da cultura musical. Acho
que ninguém consegue abarcar a totalidade.

Dunn – Eu conheço razoavelmente bem a música do eixo
Bahia-Rio-São Paulo. Conheço a bossa nova e seus frutos
diversos,alguns dos clássicos da larga tradição sambista. Adoro o bumba-meu-boi de Madre Deus, de São
Luís. A produção musical do Recife nos anos 90 foi impressionante.

Estado – Chiclete com Banana é nome de um sucesso de Jackson do Pandeiro, dos anos 50.
Critica a americanização da música brasileira e dá título ao prólogo do livro. Por quê?

Perrone e Dunn – Este livro não é simplesmente “uma visão externa da música brasileira”; mais de um
terço dos textos são de brasileiros. Três são de estrangeiros que vivem no Brasil, portanto não escrevem de
fora. Trabalhamos com uma “ala baiana” de pesquisadores excepcionais – Ari Lima, Milton Moura, Osmundo
Pinho, e Antônio Godi – que têm desenvolvido projetos coletivos e individuais sobre a complexidade da cena
musical de Salvador, a qual é, ao mesmo tempo, globalizada e enraizada em práticas musicais locais. Não
achamos que a canção de Gordurinha e José Gomes (isto é, o paraibano Jackson do Pandeiro) seja uma
simples “crítica à americanização da música brasileira”, do ponto de vista de um nacionalismo estreito. É, antes,
uma reivindicação irônica de uma relação mais complexa e dialógica entre duas grandes culturas musicais das
Américas. É uma crítica da americanização que, paradoxalmente, assume a dita influência ianque sobre a
música brasileira em termos de procedimento formal. Assim, essa canção pode ser entendida como obra
antropofágica que se apropria de alguns traços da música norte-americana para fazer crítica bem-humorada e
iconoclasta ao fluxo desigual entre as duas culturas. A introdução traz a história discográfica da música, para o
que contamos com a ajuda de Jairo Severiano.

Estado – O êxito internacional de Carmem deve-se muito à política americana de aproximação da
América Latina , na época da 2.ª Guerra. Carmem é um fenômeno político, político-cultural ou artístico?

carmenespPerrone e Dunn – O primeiro capítulo do livro é o artigo de Caetano Veloso sobre Carmen Miranda Nós
achamos que o êxito de Carmen deveu-se ao talento inegável dela somado ao nacionalismo cultural do Estado
Novo e à fascinação do público norte-americano e europeu dos anos 40 e 50 pelas “coisas latinas”. Não
esqueçamos o influxo migratório de latino-americanos para os EUA e a popularidade das músicas cubana,
brasileira e anglo-caribenha no mundo atlântico durante essa época. A política da boa vizinhança também
ajudou a criar um clima panamericano, com o apoio decisivo de Hollywood, que forneceu (nem sempre
conscientemente) um veículo para divulgar aquela conjunção de talento artístico, afirmação nacional e política
internacional que era Carmem Miranda. Claro, tudo isso precisa ser contextualizado historicamente. Hoje, nos
EUA, alguns alunos nossos de 20 anos podem curtir Tom Zé, Ilê Aiyê ou Chico César, mas nunca ouviram falar
em Carmem.Há uma década, Caetano afirmou numa entrevista, “pode ser que num futuro remoto, sob os
escombros do Império Americano, alguém constate apenas que em sua periferia apareceu uma mulher
chamada Carmem Miranda, um arquiteto que construiu uma cidade e nada mais.” É uma idéia sugestiva.
Somos mais otimistas, não em relação ao “Império Americano”, que sofrerá sua queda, como todos os
impérios, mas em relação ao legado cultural brasileiro. Pode ser que o Brasil nesse futuro vá ser reconhecido
pela multiplicidade de fenômenos ou legados culturais. Talvez não seja pensado como periferia. Talvez não
existam mais periferias ou centros. Talvez Carmem e Brasília fiquem como marcos da história do século 20 e
nada mais…

Estado – Que contribuição a etnomusicologia pode dar à
compreensão do mundo? Revela diversidades ou disfarça a
diversidade para torná-la mais compreensível à percepção dos
países de economia dominante?

Perrone e Dunn – Sem sermos propriamente da área, temos
a impressão de que alguns setores deste campo, pelo menos nos
EUA, ficaram presos a uma idéia muito estreita em relação à música
do “outro”, por anos. Instrumentos ligados na tomada ou músicas
tocando no rádio não eram dignas de estudo acadêmico. Eram
“popularescas” ou “comerciais” e não “autênticas”. O problema da
etnomusicologia era que exigia um caráter localista quase bucólico de
um objeto “puro”, impermeável à modernidade. Os estudos de
culturas musicais não-massificadas continuam a ter seu valor. Mas há
que destacar a importância de culturas musicais “populares” em
termos mercadológicos, que muitas vezes carregam um sentido de
modernidade transnacional, no Brasil e que ao mesmo tempo trazem
uma marca de diferença ou “diversidade” no âmbito internacional.

Estado – Que autores contribuíram para sua compreensão da cultura brasileira?

Perrone – O autor brasileiro mais lido na minha faculdade no início dos 70 era … Fernando Henrique
Cardoso ( “Esqueçam o que escrevi.”). O primeiro curso que fiz, em língua portuguesa, de Cultura Brasileira,
enfatizava Gilberto Freire. Orientei-me no folclore por Câmara Cascudo, Oneyda Alvarenga e outros. No que se
refere à música popular urbana, adquiri e estudei ao longo dos anos todos os livros de Tinhorão. Os dois livros
que mudaram o meu entendimento da música popular foram Música Popular Brasileira, de José Homem de
Mello, e Balanço da Bossa, de Augusto de Campos.

Dunn – Gostaria de citar primeiro Roberto Schwarz e Silviano Santiago, dois grandes críticos brasileiros
cujos ensaios de crítica cultural anteciparam por décadas as discussões contemporâneas sobre o
pós-moderno, o pós-colonial, a subalternidade e a hibridez. Concordo com o crítico norte-americano Neil Larsen
quando diz que o estudo de Schwarz Cultura e Política, 1964-69 é o melhor ensaio sobre os anos 60 em
qualquer língua. Não endosso inteiramente a perspectiva do ensaio, mas reconheço sua maestria. Posso dizer
o mesmo sobre os ensaios de Santiago sobre a contracultura dos anos 70. Na área de ciências sociais, os
estudos de Renato Ortiz sobre a indústria cultural são chaves. E os estudos de José Ramos Tinhorão são
fundamentais.

Estado – Até que ponto a questão do mercado é levada em consideração no livro?

Perrone e Dunn – De uma forma ou de outra, quase todos os ensaios lidam com a questão do
mercado sem encará-la diretamente. Em nossa introdução salientamos a relativa força dos mercados interiores
(nacionais e regionais). É claro que as empresas multinacionais de discos querem se aproveitar do mercado
crescente de música internacional. Mas não podemos reduzir este reconhecimento internacional a uma simples
luta pelo espaço mercadológico. O sucesso dos brasileiros no âmbito internacional deve-se, em grande
medida, à qualidade e complexidade da música brasileira.

Estado – O interesse pela diversidade musical internacional é fruto de interesses da indústria do
disco ou trata-se de um fenômeno de fato cultural?

Perrone e Dunn – As duas coisas. A categoria “world music” foi inventada no fim dos anos 80 por um
grupo de produtores e críticos ingleses. A invenção desta categoria foi uma resposta mercadológica a vários
fenômenos: a decadência do rock; a globalização econômica e a imigração; a difusão do discurso de
“multiculturalismo” com sua fascinação nem sempre positiva pelo “outro” ou pelo “exótico”; a formação de
novos selos independentes ou subsidiários quase-independentes que investiram neste mercado, combinando
interesses econômico e cultural; e a modernização dos meios de produção nos países do terceiro mundo. O
Brasil ocupa um espaço do “entre-lugar” no campo de “world music”, já que vem sendo um país importador e
exportador de música, desde os anos 1920 Nos anos 60, a bossa nova fez uma intervenção extraordinária no
mundo do jazz, ultrapassando o impacto da música cubana nas décadas anteriores. Por muitos anos,
procuramos os discos de música brasileira na seção de jazz das lojas. Isto mudou com a criação da categoria
“world music”, que vem muitas vezes com sub-categorias nacionais. Agora achamos os discos de Milton
Nascimento sob o rótulo simples de “Brazil”. Seria interessante achar Os Mutantes e Os Titãs na categoria
“rock”, Carlos Malta na “jazz” e Racionais MC na “rap”, mas isso também criaria outros regimes de classificação
que não dessem conta da marca de brasilidade contida nesses discos. Onde colocar Gilberto Gil? Marisa
Monte? Tom Zé? Jorge Benjor? Funk Como le Gusta? Lenine? Dona Selma do Côco? No momento, só o rótulo
nacional consegue pôr ordem no quadro.

Estado – A idéia das identidades culturais de diversas
nacionalidades ainda tem lugar?

Perrone e Dunn – Não vemos contradição entre a
globalização e a expressão de identidades regionais e nacionais. Em
muitos casos, o local, ou melhor, o particular (no sentido étnico,
cultural, identitário) ganha mais espaço no contexto da globalização.
O Olodum, por exemplo, jamais teria ganho o espaço que tem no
mercado mundial de discos, shows, e oficinas de percussão sem a
globalização cultural e a expansão de discursos e práticas
transnacionais ligadas à diáspora africana. Mesmo assim, a idéia
nacional ainda tem sua força, especialmente no caso do Brasil, que
tem forjado ao longo dos séculos uma identidade nacional muito forte.
Por mais regional ou global que seja, a maioria dos produtos culturais
brasileiros voltam, em função da língua portuguesa, para a referência
nacional. Mas este ponto de referência, às vezes chamado de
“brasilidade”, já está muito fragmentado e contestado.

Estado – Tinhorão diz que até o início do século a música
brasileira dialogava com a americana. Depois, a música americana passou a impor padrões.

Perrone e Dunn – Não achamos que a suposta época áurea de diálogo pleno entre o Brasil e os EUA
existisse nas primeiras décadas do século 20. O quadro de música popular norte-americano até os anos 40
ainda estava muito voltado para tradições locais. Quando muito, as referências musicais eram caribenhas ou
argentinas. Existe diálogo com a música brasileira no jazz de Louis Armstrong, no swing de Cab Calloway, no
blues de Robert Johnson? Por outro lado, a introdução de padrões norte-americanos no Brasil começou antes.
Nos anos 20, havia conjuntos de maxixe e samba que se designavam “jazz band”. Vide o livro de Zuza Homem
de Mello e Jairo Severiano, A Canção no Tempo. A bossa nova que virou a mesa e estabeleceu aquele
diálogo desejado por Tinhorão e por nós também. Não deixa de ser curioso que Tinhorão rejeite tão
amargamente o diálogo entre samba e jazz que, por via indireta, desembocaria na bossa. A posição de
Tinhorão tem sentido quando aponta para o peso do poderio econômico dos EUA nesta troca. No que se
refere ao impacto dos músicos brasileiros nos Estados Unidos, um só dado diz tudo. Numa edição do Real
Book, o livro de composições cifradas que os profissionais da música carregam para clubes e hotéis e outros
lugares de trabalho, o compositor mais incluído é Duke Ellington. O autor com o segundo maior número de
títulos é Antônio Carlos Jobim.

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